Por Roberto Boaventura da Silva Sá
No final de fevereiro, escrevi o artigo "Universidade e (des)emprego". Nele, tratei do resultado da Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílios do IBGE. Pela escolaridade, comprovava-se que muitos portadores de diploma universitário ocupam emprego de níveis médio e fundamental.
A partir desse resgate, tratarei do concurso público da UFMT - realizado dia 15/06 - para Técnico-Administrativo em Educação. A remuneração, mesmo abaixo da referência do DIEESE (mais ou menos 2 mil reais), atraiu - só para o cargo de Assistente em Administração (nível médio/campus de Cuiabá) - 6427 candidatos para 40 vagas; ou seja, 160,68 pessoas pleitearam o mesmo posto de trabalho.
Dentre os candidatos, embora o nível exigido tenha sido apenas o ensino médio, muitos concluíram ou estão cursando alguma graduação. Por si, esses números são desumanos. Contudo, o pior encontra-se velado. Como em qualquer concurso, numa projeção objetiva, não mais do que 10% dos concorrentes reúnem condições reais para a disputa. Muitos participam desses "eventos" apelando ao "se Deus quiser"! Porém, dominar conteúdos é indispensável; aí reside um problema político-pedagógico.
Há algum tempo, a escola abriu mão de ensinar de verdade. Os mais pobres são as maiores vítimas. A educação caiu num vazio sem precedentes, depois de absorver as teorias pós-modernas. Essas dão supremacia às subjetividades, destacando as diferenças de cada um. No coletivo, a perda é geral.
No ensino de Língua Portuguesa, p. ex., a situação é estarrecedora. O trabalho com a norma culta é ridicularizado por teóricos supostamente importantes. A leitura dos clássicos – como Machado de Assis, Graciliano Ramos, Camões e outros - é raridade; são vistos como antiquados. Com exceções, muitos professores caíram no conto do vigário, ou melhor, dos vigaristas da educação. No entanto, nos concursos públicos, esquece-se o vazio acadêmico das próprias graduações; do miserável ensino médio, então, nem é preciso falar.
Para demonstrar a impossibilidade de a maioria realizar uma prova consciente, destacarei itens solicitados em português no já referido concurso. Começo pela escolha da crônica para os concorrentes de nível médio - "Como comportar-se no bonde" - escrita por Machado de Assis em 1883.
Antes de tudo, cumprimento a CEV por ter conseguido fugir dos textos de revistas semanais, como a abominável Veja, que tem sido tão usada em vestibulares da Instituição. Foi uma surpresa agradável ver um autor clássico da literatura do Séc. XIX presente no concurso público. Todavia, lamento que a CEV tenha retirado a crônica machadiana de um site/internet. Por "descuido" deixou de ir à fonte primária, algo que não é questão menor num lócus acadêmico. Como professor de Literatura Brasileira, informo que o texto em pauta está inserido na Obra Completa de Machado de Assis, Editora Aguilar, Vol. III, p. 414-16. É assim que deveria estar na prova; é assim que se respeita a dinâmica da academia.
Feito esses comentários de ordem geral, detenho-me à crônica propriamente dita. Da semântica, que envolve consulta a dicionários, retirei três palavras de pouco uso aos jovens hodiernos: "assaz", "transeuntes" e "pespegar". Mesmo que elementar, quantos dominam os conceitos de paródia, conotação e denotação, todos - de um jeito ou outro - exigidos em uma das questões?
No âmbito da sintaxe, ainda que a questão em pauta (n. 05) tenha sido anulada por má formulação (um absurdo diante do tempo que se tem para esse trabalho BEM REMUNERADO, diga-se de passagem), quem ainda identifica pronomes oblíquos, objetos diretos e indiretos? Para isso, precede o domínio das classes de palavras, destacando os verbos com as devidas regências. Em outra questão, pedia-se algo da pontuação, mas envolvendo um aposto! Noutra ainda, tinha-se de saber, p. ex., se em certa oração havia uma conjunção subordinativa e outra locativa, distinguindo-as de elementos diversos. A acentuação – envolta a armadilhas - também não foi esquecida naquela prova.
Em resumo, nada disso parecia estranho num passado escolar. Hoje, parece linguajar estrangeiro. Estudantes de nível médio e também muitos graduados raramente dominam essas referências; tudo porque a escola não prioriza tais ensinamentos, preferindo apostar nas demandas e conhecimentos trazidos pelos alunos. Em nome das "diferenças", isso se chama exclusão prévia pelo vernáculo e pela cultura pátria. É a derrota antes mesmo de o jogo começar. Isso é pra lá de desumano.
P.S.: que os concursos continuem exigindo o que deve. A educação e os educadores precisam fazer revisão das teorias vigentes - no mínimo – criminosas contra a população mais pobre, justamente para respeitá-la num momento como esse, ou seja, de disputa por uma ascensão social mínima. Agora, todos compreenderam o que venho dizendo há algum tempo?
Roberto Boaventura da Silva Sá é Dr. em Jornalismo/USP e professor da UFMT
rbventur26@yahoo.com.br
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