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3 de nov. de 2008

UM PAÍS DE TODOS OS CARTOLAS


Roberto Boaventura da Silva Sá
Dr. em Jornalismo/USP. Prof. de Literatura/UFMT
rbventur26@yahoo.com.br

Durante o mês de outubro muitas homenagens foram prestadas por conta dos cem anos de Agenor de Oliveira, mais (re)conhecido como Cartola, embora o que usasse em sua cabeça fosse, na verdade, um chapéu-coco; este lhe servia de proteção do sol escaldante do Rio de Janeiro, pois, por muito tempo, Agenor - além de flanelinha - foi pedreiro.
Cartola - um dos mais finos compositores da rica MPB - compôs e cantou o amor com a elegância de um lord e o lirismo pungente que parece vir do fundo da alma medieval de um poeta-vassalo, ou seja, aquele tipo que chega a se queixar de sua dor às rosas, ainda que rapidamente descubra a "bobagem" disso, pois percebe que "as rosas não falam".
Além do amor, Cartola também cantou o morro - com destaque ao Morro da Mangueira - locus onde morou a maior parte de sua vida. Aliás, era para os morros - ou aos lugares de ninguém - que se deslocava um contingente imenso de descendentes africanos, como os pais de Cartola, libertos há poucas décadas.
Embora esse contingente humano sofresse todo o tipo de privação, muitas das composições de Cartola nos possibilitam imaginar como era, no geral, a vivência em comunidade de tanta gente excluída - social e economicamente - nas primeiras décadas de modernização do país.
Como o processo de industrialização era incipiente e a sofisticação do comércio bastante distante dos olhos da maioria da população, a voracidade e a perversidade extremas do capital ainda estavam porvir. Por isso, o poeta - desprovido de ambições e sem ser falso - podia ver a beleza de uma "alvorada, lá morro". Contemplando a vida, seus olhos não viam "tristeza" ao seu redor; não viam ninguém chorando. Ninguém sentia dissabor. Logo, o "sol, colorindo" era "tão lindo". Por sua vez, "a natureza" sorria, tingia...
Mas aquele morro tranqüilo, em consonância com a natureza harmônica, não existe mais. Aquelas canções de Cartola servem apenas de recordação de um tempo e um lugar perdidos. Hoje, em vez do som das "cordas de aço de um violão" do grande poeta popular, outros cartolas - alguns deles presidindo escolas de samba - comandam os morros, estabelecendo um estado paralelo. E o verdadeiro comando desses cartolas não é com poesia; não é com o som das canções. Os sons desses comandos são de estampidos atirados de pesadas armas. Até a conta de tanta gente que já tombou antes da hora está perdida. A vida está banalizada. A morte é quase indiferente. A mídia espetaculariza a desgraça com alta resolução! Assim, aos que ainda não se desumanizaram restam o choro, a dor, a tristeza, o dissabor, ou seja, o inverso do universo de Cartola.
Entendendo esse novo estágio das periferias das cidades brasileiras, outro grande poeta da MPB - Paulo César Pinheiro - tomando como ponto de partida a "Cidade Maravilhosa", compôs uma canção ("Nomes de Favelas"), na qual brinca com os nomes de alguns lugares. Na segunda estrofe, diz o poeta que "Ninguém faz mais jura de amor no (Morro do) Juramento/ Ninguém vai-se embora do Morro do Adeus/ Prazer se acabou no Morro dos Prazeres/ E a vida é um inferno na Cidade de Deus".
Na primeira parte da última estrofe, Pinheiro confirma a singeleza de antigas canções de Cartola, ao dizer que "Pela poesia dos nomes de favela/ A vida por lá já foi mais bela/ Já foi bem melhor de se morar". Nos dois últimos versos de "Nomes de Favelas", um recado é dado: "Ou lá na favela a vida muda/ Ou todos os nomes (das favelas) vão mudar".
O mesmo recado é ainda mais explícito em "No dia em morro descer e não for carnaval", um samba do salgueirense Wilson das Neves. Nesse texto, o compositor fala em guerra civil, por meio de belas metáforas do universo que circunda a passagem de uma escola de samba pela passarela. Exemplo: "O tema do enredo vai ser a cidade partida/ No dia em que o coro comer na avenida/ Se o morro descer e não for carnaval".
No desfecho desse mesmo samba, uma chamada de atenção vem direta aos governantes: "Melhor é o poder devolver a esse povo a alegria/ Se não todo mundo vai sambar/ No dia que o morro descer e não for carnaval".
Saudade do lirismo de idos tempos. Saudade de Cartola, com "C" maiúsculo.

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