Tribunal sobre criminalização dos movimentos sociais acusa o Estado, a mídia e o capital de co-responsáveis pela violência contra lideranças sociais. "As elites econômicas nacionais e internacionais, o aparato de Estado e a grande mídia comercial, são culpados pelos atos de criminalizar e difamar movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos e sociais", diz a sentença de condenação.
Por Verena Glass
Carta Maior
BELÉM - Num sobrevôo mais geral sobre o Fórum Social Mundial de Belém, o debate ambiental e as discussões sobre a crise do capitalismo certamente se destacam. Ambos os temas acabaram perpassando mais da metade dos eventos do FSM, mas neste sábado (31) um tribunal sobre os casos de criminalização de movimentos e lideranças sociais, com destaque para os defensores de direitos humanos na Amazônia, destrinchou a perseguição implacável do capital e de braços do Estado contra a oposição aos seus projetos.
O tribunal organizou uma série de depoimentos de lideres comunitários, indígenas, sindicais e defensores de direitos humanos (como o advogado da Comissão Pastoral da Terra de Marabá, José Batista, e o bispo da prelazia do Xingu, Dom Erwin Krautler), alvos de processos judiciais, ameaças de morte e atentados, para exemplificar a violência criminosa da iniciativa privada (principalmente fazendeiros, madeireiros, mineradoras e outras grandes empresas que atuam na região) e institucional (poder policial e judiciário) contra as lutas por direitos das comunidades tradicionais e indígenas e dos trabalhadores rurais e urbanos.
De acordo com o advogado Darci Frigo, diretor da ONG Terra de Direitos e que fez a vez de defesa das vítimas de abusos, os movimentos sociais são, em última instância, os únicos instrumentos de cobrança dos direitos garantidos na Constituição e por vários Tratados Internacionais das populações atingidas pelos projetos empresariais e os interesses do capital, protegidos pelo aparato do Estado através da polícia e do sistema judiciário. Por isso se torna, para estes setores, essencial a repressão e criminalização das organizações sociais, principal ameaça à hegemonia de seu poder.
Um exemplo deste processo é a perseguição ao bispo Dom Erwin, um dos principais opositores à construção da hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no município de Altamira (PA), e responsável por uma campanha de denúncias contra a exploração sexual de meninas por políticos locais. Jurado de morte, o bispo acusa o poder político e o consórcio empresarial da hidrelétrica de estar por trás das ameaças. Hoje, Dom Erwin vive sob proteção policial.
Por outro lado, o advogado da CPT, José Batista, um dos principais defensores dos direitos humanos no Sul do Pará, região mais violenta do estado, foi condenado a dois anos e meio de prisão, sem direito a penas alternativas, por supostamente ter liderado uma ocupação de sem terras no Incra de Marabá em 2007. As acusações de cárcere privado, imputadas a ele, não tem sustentação de provas, mas a apelação acabou de ser negada pelo ministério Público Federal em Brasília. A prova de que sua condenação é um ato de repressão e criminalização, explica Batista, é que uma das lideranças da ação, processada pelos mesmos crimes, foi condenada a um ano de prisão e teve direito a cumprir penas alternativas.
Para Frigo, em nome de uma suposta defesa do Estado Democrático de Direito, tanto o Estado quanto o capital, auxiliados pela grande imprensa, invertem a lógica da ordem constitucional e transforma atos legítimos de defesa de direitos em crimes. Por outro lado, nem a Justiça nem a mídia tem condenado autores de crimes ambientais, como empresas do porte da mineradora Vale, ou de morte, como os massacres de sem-terras em Eldorado dos Carajás, os mandantes do assassinato da freira americana Irmã Dorothy, defensora das comunidades locais em Anapu, e de dezenas de lideranças sociais no Pará. Por isso, explica o advogado, o tribunal, por mais simbólico, teve a função de apontar os agentes da criminalização, expor suas estratégias e denunciar suas atuações.
Leia a seguir a sentença de condenação dos "réus", o Estado, a mídia e o capital:
TRIBUNAL POPULAR INTERNACIONAL SOBRE A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS
Em 31 de janeiro de 2009, na cidade de Belém do Pará, durante as atividades do Fórum Social Mundial, foi aberta a Sessão do Tribunal Popular Internacional sobre a Criminalização dos Movimentos Sociais.
Respondem por estes atos de estigmatização social, as elites econômicas, o aparato de Estado e a Mídia Comercial.
As elites econômicas fazendo valer seus interesses ditados pela lógica do capital, patrocinaram perseguições as vítimas deste processo. Fazendeiros, sojeiros, arrozeiros, madeireiros, entre outros, são conhecidamente vinculados a estes processos de criminalização.
O aparato de Estado, subvertendo as conquistas constitucionais em suas ações institucionais, estabelece uma repressão mais planejada e ousada em relação a movimentos sociais, além de ser conivente com as práticas de criminalização, seja através de seu poder ostensivo ou através de seu poder jurisdicional.
A mídia empresarial ao veicular informações deturpadas da realidade, difamando defensores de DHs, aje caracterizando ações populares legítimas como crimes, propagando uma suposta ilegitimidade de tais ações transformando lideranças e defensores em criminosos perante a opinião pública e mesmo o judiciário.
Segundo restou provado, esta postura dos réus em relação aos movimentos sociais merece, há tempos ser enfrentada com coragem. Pelo menos no caso brasileiro, a forma de tratar as questões sociais sempre foi autoritária, estampada na máxima: "questão social é caso de polícia".
Criminalizar está relacionado diretamente à transformação, caracterização e tipificação de uma determinada ação em crime. Através da utilização de instrumentos legais, busca-se estabelecer uma intencionalidade não existente, mas que dá conta de transformar ações e pessoas em suposta bandidagem (Sauer, 2008).
Importante esta distinção, pois revela que há uma ligeira mudança na lógica e nos instrumentos utilizados pelos réus para criminalizar ações legítimas. Ações mais articuladas por parte dos meios de repressão do Estado deram a tônica nos casos aqui apresentados, que obviamente perpetradas em co-autoria com os demais réus.
Uma vez caracterizada a criminalização como um ato que vai bem mais além da mera repressão violenta, fica mais fácil perceber a conduta nociva dos réus.
Esses atores sociais, que ora figuram como réus neste Tribunal, através de suas respectivas ações, tergiversam a realidade para imputar aos movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos a ilegitimidade de suas ações.
Articulada com os poderes estatais, as elites econômicas trabalham praticando o assalto à dignidade humana, furtando os sonhos e a esperança de dias melhores a milhares de trabalhadores, dizimando populações tradicionais, indígenas, quilombolas, em nome do lucro representado nas atividades do agronegócio.
Neste sentido, como ficou provado, operam articuladamente para a realização dos processos de criminalização dos movimentos sociais, ao pensar um modo de transformar ações legítimas de defesa de Direitos Humanos, em ações criminosas.
O Estado por sua postura, exaustivamente descrita perante este Tribunal, é violador de preceitos constitucionais, ao promover, através de seus aparatos, chacinas, espancamentos, processos judiciais, e outras ações, colocando-se na contramão das principais necessidades de nossa gente, como reforma agrária, moradia, condições dignas de trabalho, mídia livre, demarcações de terras indígenas e quilombolas, etc.
A grande mídia comercial, assentada em princípios capitalistas, ao propagar ao mundo a atuação dos movimentos sociais, de maneira deturpada, imputa a estes a pecha de criminosos, insuflando a opinião pública a encarar tais movimentos como ilegítimos a partir de sua visão estreita de legalidade, viola flagrantemente o direito fundamental à informação.
As elites econômicas, agindo dentro da pauta estabelecida pelo grande capital, representado pelos grandes conglomerados econômicos, impõem aos povos do mundo sofrimentos diretamente ligados as suas nocivas atividades econômicas, gerando trabalho escravo, trabalho infantil, devastação ambiental, sucateamento educacional, aniquilamento de comunidades tradicionais, populações indígenas e quilombolas, como já demonstrado acima.
Diante do exposto, restou provado que os réus, no trato de conflitos rurais e urbanos - sobretudo quando envolvem o reclame e a defesa dos Direitos Fundamentais da pessoa humana, a partir da mobilização dos movimentos populares organizados - agiram propagando informações deturpadas da realidade, difamando defensores de direitos humanos, criminalizando as organizações sociais ou ainda sendo omissos com tais práticas de criminalização, como forma de tentar conter os avanços que as forças populares possuem e representam.
Esta repressão está ligada intimamente a uma política costumeiramente autoritária que o Estado, as elites econômicas e os meios de comunicação de perfil industrial, possuem e levam a efeito.
Assim, tendo ouvido acusação e defesa, as provas apresentadas perante este júri popular, nós juízes do povo, declaramos que as elites econômicas nacionais e internacionais, o aparato de Estado e a grande mídia comercial, são culpados pelos atos de criminalizar e difamar movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos, sendo clara sua culpabilidade também em relação aos assassinatos de milhares de lutadoras e lutadores de todo o mundo.
Tendo em vista o exposto, este Tribunal, no uso da soberania que lhe foi conferido pelos movimentos sociais aqui presentes, declara ainda que todos os povos são livres para escolher os rumos de sua emancipação social e política. Os Estados devem facilitar as possibilidades para o acontecer de uma sociedade livre e igual. A mídia comercial, deverá abandonar a sua perspectiva industrial, para fazer valer o direito fundamental à informação, sendo as mídias independentes fortalecidas, assim como determinamos que a reforma agrária, a regularização fundiária, a demarcação de terras indígenas e quilombolas, o fomento a agricultura familiar, são meios necessários para estabelecer o fim das atividades econômicas baseadas no modelo agro-exportador, e fundamentais para a construção da soberania de todos os povos.
Belém-PA, 31 de janeiro de 2008.
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