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11 de mar. de 2011

Diário de Bordo de fotógrafo conta o Carnaval de Oruro




Por Mário Friedlander

Sábado (05.03)

Escrevo pelo dia de ontem e hoje, pois desde o final da
tarde de ontem, tanto eu quanto o Hélio fomos derrubados
pelo "Soroche" ou mal das alturas e ficamos indispostos sem
condições de escrever ou sair para fotografar a noite.
Passamos o dia de ontem fazendo gestões para conseguirmos
autorização e credenciais para fotografar, filmar e circular
livremente pelo local onde é realizado o Carnaval de Oruro.
Conseguimos nos reunir com a equipe da Secretaria de
Cultura e depois de explicar os objetivos do projeto fomos
contemplados com a credencial desde que deixemos uma
coleção de boas imagens do Carnaval para a Secretaria, para
ser usado com fins de divulgação institucional com todos os
direitos autorais respeitados, segundo o Secretario de Cultura.
Tarefa cumprida, tratamos de procurar contato com algum
grupo Afroboliviano e de se organizar para o agitado carnaval
que se aproximava.
Como no final da tarde ficamos muito indispostos pela altitude
e também pelo acumulo de cansaço, falta de alimentação
adequada e stress de uma semana de viagem enfrentando
desafios todos os dias, nosso dia terminou na cama, sem
grandes novidades.
Sábado começou com os grupos culturais se apresentando
desde as cinco da manhã, fomos acompanhar os desfiles
para fotografar e ver como era o movimento. A festa é bem
organizada, tem bastante segurança da polícia que a toda hora
verifica as credencias e retira quem não as tem. Arquibancadas
cercam a avenida e os primeiros grupos tem pouco público.
As apresentações são muito motivadas e a música e os trajes
e adereços são muito criativos e exóticos para nós, a mim soa
como algo totalmente asiático ou chines, mascáras de monstros
de todos os tipos, dragões, caveiras, bruxas e diabos, muitos
diabos de todas as cores.
Os grupos se apresentam um após o outro com intervalo de
poucos minutos, aos poucos as arquibancadas se enchem de
famílias, grupos de jovens, turistas e todo tipo de gente, ao
redor os ambulantes ocupam todos os espaços disponíveis e a
agitação começa a tomar conta de tudo.
Gastamos todos nosso cartões de memória antes do horário
de almoço e quando uma chuva fina começa a cair resolvemos
bater em retirada para descarregar as fotos e se alimentar
adequadamente.
A tarde voltamos ao Carnaval, que ao contrário de nós não teve
nenhuma pausa, continuou por todo o tempo, inclusive com
chuva.
Ao chegar, percebemos que a agitação dominou tudo ao redor
e dentro da avenida, arquibancadas e os grupos. A guerra de
água e de spray de espuma tomou conta e todos são alvos,
principalmente as crianças e os estrangeiros, muito gente está
bebendo muito e o ritmo de apresentação dos grupos é muito
mais rápido.
Fotografamos tudo que pudemos, sempre se esquivando
de bexigas de água e dos jatos de spray, os policiais estão
mais impacientes e o movimento dentro da avenida começa
a atrapalhar a apresentação dos grupos e a produção de
boas imagens, em resumo, tudo começa a virar uma grande
bagunça, resolvemos bater em retirada novamente, mas
antes encontramos um grupo de Afrobolivianos chamado
Saya Afroboliviana Chijchipa, fazemos um amistoso contato e
percebemos que os bolivianos adoram o ritmo afro.
A noite retornamos ao carnaval para documentar uma
apresentação de outro grupo de Afrobolivianos chamado
Mocusabol, mas encontramos o ambiente na avenida muito
deteriorado, bebados por toda parte, pouca polícia para dar
segurança, uma multidão se apertando e invadindo a avenida
das apresentações, os grupos se apresentando em correrias
frenéticas, a iluminação muito ruim e a guerra de água e spray
de espuma cada vez mais generalizada e violenta.
Tentamos contato com a Mocusabol e sua apresentação seria
muito tarde, resolvemos abortar a documentação, não havia a
mínima condição de produzir boas fotos naquele ambiente, os
grupos culturais eram espetaculares, mas a bagunça tinha se
tornado um caos pelo menos aos meus olhos e não quis arriscar
mais algumas horas de desconforto e tensão para fazer as
fotos.
Vamos procura-los fora do Carnaval de Oruro, em sua terra
natal, longe desta agitação maluca.
Assim terminamos nosso nono dia de jornada, mas o Luca ficou
zangado e saiu agora as 23:00 para se reunir com o grupo de
Afrobolivianos e estreitar os laços para nosso futuro contato,
ainda bem que temos bons parceiros, pois desta vez nem eu
nem o Hélio quisemos encarar.
 
Domingo (06.03)

Domingo de Carnaval em Oruro, saímos por volta da 8 da
manhã para o local de entrada dos grupos que irão desfilar
hoje, para nossa surpresa, toda a avenida está limpa e
organizada, a polícia voltou a controlar as ruas, pouca gente
nas arquibancadas pois os últimos grupos de ontem acabaram
seu desfile ao amanhecer de hoje, neste meio tempo tudo foi
limpo e muita gente foi prá casa dormir um pouco, tomar um
banho e comer algo.
Assistimos o início da apresentação desde o primeiro grupo e a
partir daí é um atrás do outro e assim será até o amanhecer de
segunda-feira.
Cada grupo de um lugar diferente, com músicas diferentes,
roupas, adereços e gestuais diferentes, reforçando a
diversidade étnica da Bolívia, não é a toa que a Unesco
transformou o Carnaval de Oruro em Patrimônio da
Humanidade, realmente vale a pena conferir e participar.
Ficamos a manhã de sol forte gravando cenas em vídeo e
fotos e depois como sempre, descarregar e tratar fotos, postar
na internet, comer, descansar um pouco e a tarde caímos na
rua de novo. Subimos para "Alto Oruro", um dos bairros de
periferia empoleirados nos morros do entorno da cidade para
fazermos uma imagem panorâmica da cidade.
A paisagem da cidade e das montanhas no horizonte é muito
bonita, ao longe vemos o Lago Oruro com pouca água em plena
época das chuvas e ficamos sabendo que na época da seca ele
seca completamente em função do desvio que fizeram do rio
que o alimentava, uma grande perda ambiental para toda a
região.
Na volta observamos um boneco pendurado num poste com
uma placa dizendo assim: "Todo Maleante sera Linchado", ou
seja, todo bandido será linchado, essa é a lei das periferias das
grandes e pequenas cidades da Bolívia e parece que isso ajuda
a manter os níveis de criminalidade muito abaixo de qualquer
cidade brasileira, muito, mas muito abaixo.
Aproveitamos o tempo firme e vamos a Avenida Cívica, onde no
alto de ladeiras e próximo a Igreja da Virgem do Socavon, todos
os grupos encerram seu desfile, em meio a uma área aberta
cercada por grandes arquibancadas.
O espetáculo neste lugar, supera muito o que se apresenta mais
abaixo, junto ao palanque das autoridades, aqui o bicho pega
mesmo e parece que estamos num carnaval brasileiro.
Mas de repente a chuva fina chega e logo ela engrossa, hora
de sair fora e proteger o equipamento que não pode com
chuva, voltamos ao nosso alojamento em meio a um tumulto
inigualável, chuva, lama, milhares de pessoas com capas
descartáveis que aqui são usadas dia e noite por todos os
moradores para se protegerem da guerra de água, todo mundo
meio bêbado e a guerra de água e spray de espuma cada vez
mais animada.
Ninguém reclama, ergue a voz ou toma qualquer atitude
agressiva, os bolivianos são dóceis e mansos, mas quando
necessário são muito enérgicos.
O carnaval vai acabar e todos preparam uma onda de
protestos, greves e bloqueios contra o governo de Evo Morales.
Por todas as partes as pessoas estão insatisfeitas com seu
governo e já não admitem mais dar apoio ao mesmo.
Mas voltando ao carnaval, a chuva se mantém e o carnaval
também, cada vez mais animado, agitado e molhado, ninguém
vai embora e os grupos continuaram a se apresentar em todo
seu longo e íngreme trajeto.
Estamos terminando nosso nono dia de jornada, comentando
com nossos anfitriões as tristes notícias que chegam de La Paz,
as chuvas torrenciais estão derrubando centenas de casas e até
mesmo o carnaval de La Paz foi cancelado.
Em breve iremos ver pessoalmente o acontecido, pois La Paz é
nosso próximo destino, assim que o Carnaval de Oruro acabar.

Segunda-feira ( 07.03)

Segunda-feira de Carnaval, acordamos cedo para organizar as
coisas do projeto, e saímos antes das nove para assistir a Missa
da Virgen del Socavon e ver como ia ser o final do carnaval de
Oruro. Chegamos a Igreja e vimos uma intensa movimentação
de fiéis fazendo preparativos e ambulantes montando barracas
no grande pátio em frente a igreja, todos os tipos de comida e
bebidas estavam sendo oferecidos nestas barracas, inclusive
muita cerveja, que segundo um dos organizadores da festa, não
era para ser servida, nem vendida, nem bebida.
Visitamos um mirante construído recentemente ao lado da
igreja, de onde se avista toda a cidade e se visita um grande
cruzeiro e uma imagem da santa no alto do mirante, de lá
pudemos perceber que o final do carnaval seria agitado, muita
gente estava se encaminhando a igreja e diversos grupos de
músicos e dançarinos também, quando descemos do mirante
o pátio fervilhava de gente, bandas e figuras com máscaras
fantásticas, os ambulantes ofereciam além de muitas comidas
tradicionais, objetos religiosos, artefatos para xamanismo,
plantas medicinais, publicações sobre o carnaval de Oruro e
muchas cositas mas.
De repente o padre abre a porta principal da igreja e o
burburinho começa, todos os líderes dos grupos culturais que
se apresentaram no carnaval, levando as imagens de seus
santos padroeiros e muitos dançarinos e dançarinas com suas
fantasias e máscaras de diabo, todos correm até o padre em
busca da benção com água benta, no meio do burburinho uma
das bandas começa a tocar com força, quando vai terminando a
música, outra banda começa a sua a assim por diante.
Imersos em música de carnaval boliviana o pátio da igreja
ferve de gente se movendo em todas as direções, com todas
as intenções, as bandas que já tocaram se reúnem embaixo
de lonas coloridas para tomar cerveja e confraternizar,
muita gente corre para o interior da igreja onde começou a
missa principal, as crianças duelam com sprays de espuma e
buscam os brinquedos de um parquinho espalhado pelo pátio,
famílias fazem oferendas de fogos, cervejas e ervas em frenta
a escadaria da igreja, todos se abraçam, sorriem, tiram fotos
entre si, o ambiente é super cordial e pacífico, o carnaval é uma
celebração alegre da vida.
Enquanto tudo isso vai acontecendo, circulamos como loucos
pela multidão sem fim e tento entender afinal de contas sobre o
que está acontecendo de fato.
Abaixo de nós, num outro pátio maior que é chamado de
Avenida Cívica, as arquibancadas de tábuas, altas e numeradas
a cada meio metro, estão cheias de gente que pagou para
sentar ali, muita gente se pendura onde pode aproveitando
os desníveis enormes das ruas, e no pátio, muitos grupos se
revezam em novas apresentações ou demonstrações como são
chamadas pelo pessoal da festa.
O carnaval que eu achava que ia acabar, se agiganta mais
ainda, todos participam com entusiasmo e então fico sabendo
que hoje é um dia para celebrar com muita bebida e festa o
final das apresentações solenes dos 48 grupos culturais que
participaram do Carnaval de Oruro neste ano.
Mas a partir de amanhã e durante toda a semana os grupos de
Oruro irão iniciar uma disputa acirrada para ver quem dança
mais, cada grupo se reunirá em diversos locais especiais da
cidade e de suas comunidades e lá ficarão dançando por dois,
tres ou quatro dias, sem parar, o grupo que conseguir ficar mais
tempo bailando e bebendo ganha a disputa.
A chuva fina, mais uma vez interrompe meu trabalho
de documentação e corro para fugir da chuva e daquela
intensidade inesperada de celebração que me encanta e
perturba .Pelas ruas cheias de gente e lixo, a celebração
continua ininterrupta em todos os movimentos, gestos e ações,
a chuva é só mais um elemento do todo, ela não interrompe
nada, só provoca rearranjos e mais movimentação ainda.
Estou pensando em voltar ano que vem, agora estou
começando a entender um pouco do que acontece por aqui e
confesso que gostei muito do muito pouco que vi.
Quero mais e melhor, Oruro agora faz parte de minha
vida, amanhã iremos a La Paz e sei que o turbilhão de
acontecimentos irá continuar, pois que venha o amanhã.
 
Terça-feira (08.03)
 
Terça-feira de carnaval é o dia para fazer oferendas a Pacha
Mama, carros são benzidos nas igrejas, as lojas fechadas pelo
feriado são reabertas pelos proprietários e seus familiares
para fazerem as oferendas que são queimadas pelo fogo em
pequenas churrasqueiras que todos tem.
Estouros de bombinhas mil, todas juntas encerram as
oferendas, casas são enfeitadas com flores e tomam banho com
baldes, são muitos os tipos e procedimentos para as oferendas,
enquanto isso nas ruas, todos os jovens e crianças se mobilizam
com baldes de água, bexigas e armas plásticas para jogar água
nos passantes, de dentro dos carros, inclusive dos taxis, todas
as crianças soltam jatos de água nos desavisados, ninguém
reclama, uns fogem, outros revidam com spray de espuma e o
clima do carnaval continua positivo, não vimos nenhuma briga,
agressão ou xingamento em todos estes dias.
Entrevistamos nosso anfitrião, Dom Rene Vergara, proprietário
do Residencial Vergara no centro de Oruro, sobre sua real
profissão e talento, ele se considera um mineiro com 48 anos
de atuação, mas o atual governo desapropriou suas diversas
minas e agora ele trabalha com a energia de um mineiro
em seu antigo residencial, mas sempre que pode fala com
entusiasmo de sua vida nas minas e como agora tudo é mais
dificil e sem graça.
Saímos para visitar a Mina del Socavon, cuja entrada está no
interior da Igreja de la Candelária ou de La Virgen del Socavon e
nos deparamos com um tunel largo que entra muito fundo
na terra, nas galerias planas montaram um pequeno museu
sobre as minas e depois de visitar a imagem do "Tio da Mina",
assistimos uma palestra apaixonada feita pelo guia que
acompanha a todos.
Oruro é mais velha que Potosi, aqui começou o trabalho de
mineração no que hoje é a Bolívia, aqui chegaram os primeiros
negros escravizados, que sucumbiram em pouco tempo ao
clima e altitude e aos mal tratos e trabalho insalubre e brutal.
Visitamos a mina e descobrimos com assombro que a partir
do interior da Igreja podemos percorrer 250 km de túneis e
galerias que se espalham pelas montanhas que circundam a
cidade e que hoje são ocupadas pelos bairros da periferia.
De volta a luz e ao frio do dia, vamos entrevistar Fabrizio
Cazorla Murillo um jovem apaixonado pela cultura local,
em especial a referente sobre o Carnaval de Oruro, somos
recebidos em sua casa como se fossemos velhos amigos e sua
mãe abre uma garrafa de cerveja local para que brindemos
conforme determina a tradição do dia de hoje, só um golinho
a Pacha Mama que é jogado sobre o tapete da sala e um meio
copo para cada um de nós, cumprida a tradição, penetramos
no universo cultural entulhado de referências de Fabrizio, são
artigos científicos, recortes de jornais velhos de todo um século,
centenas de discos antigos com as bandas e músicas de todos
os carnavais antigos, trajes originais até do século 19, máscaras
antigas, fotos e postais antigos, filmes, negativos preciosos de
vidro em grande formato, textos elaborados por ele mesmo,
enfim, nosso novo amigo detém uma parte importante, senão
a maior da história do Carnaval de Oruro e sente grande prazer
em compartilha-la.
Lembro de nosso parceiro e consultor na Europa, o Historiador
João Lucídio, se ele visse o acervo existente com nosso amigo,
mudaria para Oruro para produzir livros e muitos outros
produtos contando a história deste patrimônio da humanidade.
Finda nossa entrevista, arrumamos as coisas e partimos a
La Paz, situada a 237 km em estrada de asfalto de ótima
qualidade em terreno nivelado sobre o Altiplano onde a cada
poucos quilômetros nos deparamos com pequenas vilas e
comunidades de agricultores e criadores de lhamas, carneiros e
vacas.
A paisagem muito bela e o clima frio sem exagero, transforma
nossa viagem num passeio, cujo final deslumbrante é a
chegada a "El Alto" subúrbio gigante de La Paz situada mais
abaixo no fundo do vale.
A descida pelo trânsito tumultuado de La Paz é acompanhada
pelas visões impressionantes do crescimento urbano que
engoliu todas as escarpas de vale e subiu todas as montanhas,
que agora com as chuvas violentas, derrubam centenas de
casas sem dó nem piedade.
Acima do horizonte, contemplando o caos urbano, o gigante
Monte Illimani, com seu topo coberto de neve densa, iluminado
pelo pôr do sol, nos deixa abismados e felizes por chegarmos a
salvo a La Paz.
Cansados depois de 12 dias de viagens e do enigmático e
impetuoso Carnaval de Oruro, encontramos nosso refúgio
silencioso, elegante e aconchegante no Hotel Las Palmas, outro
de nossos parceiros que nos acolhe com uma perfeição sequer
imaginada.
Aproveitamos a noite para comer algo e nos reunirmos
longamente com a Giovanna Isabel Gonzales Saracho, nossa
inestimável parceira em La Paz, onde tratamos de muitos
assuntos que deverão ser encaminhados a partir de amanhã
cedo.
Assim completamos doze dias de viagem pela Bolívia.

Crédito das fotos: Mário Friedlander

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